Novo
Pentecostes
Gustavo Corção
É a última espetacular
novidade religiosa que se espalha com grande sucesso no mundo inteiro. Num
recorte recente de "Le Monde" lemos a notícia desse movimento
cujo sucesso se contrapõe, na pena de Henri Fesquet, "ao declínio das
grandes Igrejas" mais ou menos institucionalizadas. Esse movimento
de origem protestante, nascido antes do século, cresceu agora rapidamente. O
número de "Assembléias de Deus" que era de 264 em 1963 ultrapassa o
número de 400 em 1972. Calcula-se em dez milhões o número de praticantes no
mundo inteiro", diz "Le Monde"; e como era de esperar
anuncia que o movimento já entusiasmou o mundo católico onde ganha o nome de
"renovação carismática" e até reclama o mais ousado título de
"novo pentecostes".
Em Junho reuniu-se na
Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, um "congresso
de renovação carismática" com o comparecimento de 25.000 participantes
entre os quais figuravam muitos padres, Bispos, e o Cardeal Suhenens, Primaz da
Bélgica.
Que dizem de si mesmos
esses católicos empenhados em tal movimento? Várias publicações, entre as quais
destaco a do jovem casal americano Kevin e Dorothy Ranaghan, num livro
traduzido em francês com o título "Le Retour de l'Esprit",
apresentam o movimento pura e simplesmente como uma descontinuidade explosiva
surgida na História do Cristianismo e produzida, nem mais nem menos, por uma
nova descida do Espírito Santo sobre os milhares de adeptos que recebem, por
imposição das mãos de outros, o "batismo do Espírito" e
subitamente se convertem, mudam de vida, passam da mais profunda depressão à
mais jubilosa exaltação, e começam a "falar em línguas", como
os cristãos da Igreja nascente, e como os apóstolos no dia de Pentecostes (At
2, 1)
Uma as características
do estado de espírito produzido nas assembléias carismáticas é a predominância
da exteriorização sobre a interiorização, e a marcada
emotividade que leva os adeptos a sentirem a presença do
Espírito Santo, e a declararem essa convicção com uma espontaneidade — cada um contando sua experiência própria — que se liberta de
qualquer compromisso de submissão à aprovação da Igreja.
Até aqui o nosso espanto não foi
excessivo porque este fim de século e o mundo católico dito
"progressista" já nos saturaram de extravagâncias, e já nos embotaram
a manifestação do espanto. A nossa preocupação começou a ganhar dimensões de
alarme quando vimos que o prudente hebdomadário "L'Homme Nouveau",
dirigido por Marcel Clement, enviou 7 representantes ao Congresso de "renovação
carismática" na UniversidadeNotre Dame, e que o próprio Marcel
Clement, no seu editorial de 1o. de Julho, não hesita em falar de "novo
Pentecostes" e de fazer este estranho pronunciamento:
"É uma realidade de Igreja. Equilibrada,
serena, poderosa. Não se trata de misticismo exaltado. É verdadeiramente o
Espírito Santo que os invade e os faz caminhar muito depressa até à única e
verdadeira Igreja de Jesus Cristo."
A nós nos parece que depressa demais
pronunciou-se o Prof. Marcel Clement, como também nos parece incompreensível que
se diga "cheminement très vite jusqu'à la seule et veritable Église de
Jesus Christ" de pessoas já nela inseridas pelos sacramentos.
Prevemos o caminho de uma luta mais
difícil do que as outras que até agora tivemos de enfrentar porque todos terão
pressa excessiva de marcar pontos positivos num movimento em que os rapazes e
as moças só dizem que querem rezar em "comunidade carismática",
porque receberam do próprio Espírito Santo, num novo Pentecostes, dons
maravilhosos que os tiraram dos mais profundos abismos e os elevam à mais pura
alegria. Quem quererá cobrir-se do negrume de todas as antipatias para
enfrentar tão maravilhosa transformação do mundo com um mínimo de reserva ou de
exigência?
Para encaminhar adequadamente a
questão, amigo leitor, começo por lhe lembrar alguns títulos que nos dão
direitos a certas exigências. Somos um povo que há 2 mil anos segue a pista de
um Deus flagelado; pertencemos à forte raça daqueles mártires que deram o
sangue para testemunhar a verdadeira Religião e para resistir a todas as
fraudes; descendemos também daqueles outros que silenciaram nos mosteiros os
seus próprios sentimentos e as suas próprias emoções para deixar que só o
Espírito de Deus falasse por eles. Pertencemos a um Povo ainda mais antigo que
ouviu do próprio Deus o trovão de uma identidade absoluta:
"Eu sou aquele que sou", e o
preceito da mais inquebrantável intolerância: "não terás outro deus
diante de minha face".
Tudo isto, amigo leitor, nos inclina a
uma profunda aversão por tudo que pareça equívoco, e que, em matéria de
Religião, mais manifeste as turbulências da pobre alma humana torturada por um
mundo encandecido do que as grandezas de Deus manifestas pelos Apóstolos no dia
do único e verdadeiro Pentecostes.
Logo a seguir tentarei expor as razões
que me levam a ver nesse movimento uma nova feição da "revolução"
que quer por vários processos destruir a Igreja.
Aqui trago apenas os títulos que me dão
o direito de exprimir tais reservas, e que me lembram o dever de as exprimir.
Pecador e inútil servidor, pertenço todavia àquela raça exigente. Sou homem de
Igreja que só quer nela viver e nela morrer.
Para comparar o movimento chamado
"pentecostismo" com a Igreja de Jesus Cristo, comecemos por
comparar a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, no dia de Pentecostes
ao "novo pentecostes" que desce sobre cada um dos 25 mil
membros do encontro realizado na Universidade Notre Dame (USA).
Há fenômenos semelhantes, como a "glossolalia"
ou língua estranha falada pelos crentes do Cristianismo no primeiro século,
pelos Apóstolos no dia de Pentecostes, e hoje pela multidão dos pentecostistas.
Mas a semelhança termina quando ponderamos que Pentecostes foi, para a Igreja
nascente, não uma explosão de manifestações espontâneas e multiplicadas, mas,
ao contrário, um atingimento de maturidade e de esplendor de ordem. Foi mais
uma cristalização eclesial do que uma explosão carismática. Diríamos até que esse grande dia da Confirmação da Igreja vinha pôr termo à anarquia ou à
dispersão informe dos primeiros tempos. Assinalemos que, em Pentecostes, com a
evidência das línguas de fogo, a descida do Espírito Santo se fazia sobre a
Hierarquia para bem marcar o caráter da Igreja Católica. E as "línguas"
que também os Apóstolos nesse dia falaram, usando o dom das línguas que S.
Paulo não reprova mas não estimula? Ora, esse ponto de semelhança é na verdade
um ponto de oposição porque, enquanto os "pentecostistas" de
hoje falam línguas que ninguém entende, nem eles mesmos, os Apóstolos falavam
uma "língua que todos os vários estrangeiros presentes ouviram e
entenderam como a própria". Torna-se evidente que o Espírito Santo, nesse
dia, usou o mesmo dom para exprimir a "unidade de língua" da Igreja e
a sua destinação universal. Formalmente, essa "unidade de língua"
significa "unidade de doutrina", mas também pode significar a real
unidade de língua que a Igreja teria quando recebesse seu o cunho Romano e
portanto latino.
Vê-se assim que o "novo
pentecostes" é dispersador quando o verdadeiro Pentecostes foi congraçador;
que o moderno fenômeno é anarquista onde o autêntico é ordenador e hierárquico;
que o moderno fenômeno se traduz em manifestações emotivas diversas e mais ou
menos chocantes, enquanto o verdadeiro Pentecostes se arremata por um discurso
de Pedro que imprime ao mistério pentecostal todo o seu sentido de unidade
eclesial. É especialmente digno de nota o arremate do discurso de Pedro e do
capítulo II dos "Atos".
Vale a pena comparar esses textos
sagrados com a narração de Irling Shelton, uma das representantes de "L'Homme
Nouveau" no congresso de Notre Dame:
"A oração perde seu ritualismo, seu
formalismo, sua rotina." (Por que rotina?) Sem rejeitar completamente a
oração ritual (...) a tônica é posta na espontaneidade (...) "a
expressão dessa efusão anterior pode então se acompanhar de movimentos da
sensibilidade. Cantam, riem, choram, batem as mãos, prosternam-se no chão ou
elevam os braços (...) Essas manifestações incontroladas da emotividade podem
degenerar em atitudes grotescas e até em histeria de grupo. Mas quando o líder
(?) controla bem seu grupo de orações, e sua emotividade, as manifestações
sensíveis da efusão do Espírito poderão aquecer os corações e servir de
edificação para todos".
Chamo a atenção do leitor católico
alfabetizado na boa doutrina para a sem-cerimônia com que a autora dessas
linhas atribui tais efusões ao Espírito, em vez de atribuí-las à Carne que
costuma opor às obras do Espírito esse tipo de exteriorização. Na sadia
espiritualidade traçada na Igreja pelos santos doutores aprendemos que os dons
do Espírito Santo são recebidos por todos desde o seu batismo, e sabemos também
que a espontaneidade sobrenatural é o chamado "modo dos dons"
que opera nas almas longamente trabalhadas, arduamente purgadas. Há uma
espontaneidade animal, sensível que precede a maturidade e a espiritualização.
Qualquer criança a possui. Mas a espontaneidade dos dons é uma longa conquista
que só os grandes santos atingem através da noite dos sentidos e da subida do
Carmelo.
Estas poucas considerações tecidas no
plano da teologia mística servem para mostrar que não há nada mais diverso e
distante da verdadeira espontaneidade dos santos do que essa dos novos
carismáticos.
Essas e outras notas do movimento
chamado "Pentecostismo" mostram, a quem conheça os rudimentos
da sagrada doutrina, que se trata de mais uma subversão contra a Igreja,
disfarçada na falsa sublimidade de manifestações temerariamente atribuídas ao
Espírito Santo. Explicam-se talvez pela extrema miséria a que chegou esta infortunada
geração condenada às oscilações vertiginosas que vão da mais profunda depressão
à mais delirante exaltação. Dá pena. Sim, dá-nos uma imensa tristeza esse
quadro — mais esse! — de uma geração que se precipita na degradação dos mais
altos dons naturais e sobrenaturais com uma espécie de irresponsabilidade, de
subinocência que nos leva à vertiginosa indagação sobre a origem desse mal.
Quem será então o culpado do rapto de crianças? Quem serão os culpados da
perversão de toda essa geração dos que já não sabem de que espírito são?
Deverei procurar entranhas de misericórdia para não ver culpas nos erros e nas
quedas? Não seriam antes entranhas de indiferença que de bondade?
Ah! Se pudéssemos deixar os "pentecostistas"
fazerem a grande antepenúltima asneira do século! Se pudéssemos apenas suspirar
e lamentar o misterioso consentimento divino! O dia correria mais doce e o
crepúsculo da vida teria a suavidade das tardes em que o Céu e a Terra parecem
festejar o feliz amadurecimento de um dia do mundo. Mas que contas prestaria eu
a Quem me pôs esta pena na mão e esse papel estendido sobre a mesa?
(Gustavo Corção - Revista "Resistência", 15 de Janeiro
de 1974)
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